MCTB010 – 1q’20 – Aula 1 (12.2.20)

Motivação e objetivos

Como seu próprio nome diz, o Cálculo em Várias Variáveis lida com as operações de derivação e integração sobre funções de várias variáveis. Isso é feito inicialmente tratando-se cada variável da função separadamente enquanto as demais variáveis são mantidas fixas, de modo a sermos capazes de usar conhecimento prévio de Cálculo de funções de uma variável. No caso da derivada, esse procedimento nos leva à noção de derivadas parciais e, mais em geral, à noção de derivadas direcionais. No caso de integrais, contudo, queremos ser capazes de integrar em domínios que, intuitivamente, tem dimensão mais alta, mas a ideia subjacente à construção da integral de Riemann é facilmente generalizável a tais domínios — mais precisamente, passamos a calcular volumes ao invés de áreas. Além disso, dentro de certas condições (estabelecidas e.g. por alguma versão do teorema de Fubini), a integral de Riemann em várias variáveis pode ser calculada calculando-se a integral em cada uma das variáveis separadamente e em sucessão: a chamda integral iterada.

O ingrediente que falta nisto tudo é justamente a conexão entre derivação e integração para várias variáveis. No caso de funções de uma variável, tal conexão é estabelecida pelo Teorema Fundamental do Cálculo. Obviamente, podemos aplicar esse teorema separadamente em cada variável, mas seu significado geométrico não é claro de um ponto de vista de várias variáveis pois é vinculado a uma escolha arbitrária de variável. Para elucidar essa afirmação, atentemos por ora ao (segundo) Teorema Fundamental do Cálculo para funções de uma variável, que nos diz que se f:[a,b]\To\RR é derivável em [a,b] e sua derivada f' é contínua em [a,b], então

(1)   \begin{equation*}   f(b)-f(a)=\int^b_a f'(t)dt\ . \end{equation*}

A busca por uma extensão genuína dessa fórmula para uma função de n>1 variáveis f:U\To\RR, onde U\subset\RR^n, envolve as seguintes questões:

  • O lado esquerdo de (1) envolve todos os valores de f na fronteira do seu domínio. Qual o seu significado em dimensões mais altas?
  • O lado direito de (1) envolve a integral de f' sobre o domínio. Qual a noção de derivada que devemos usar dentro da integral em dimensões mais altas para obtenhamos igualdade com o lado esquerdo? Claramente não pode ser nenhuma derivada parcial ou mesmo direcional de f, pois nesse caso o Teorema Fundamental do Cálculo em uma variável essencialmente nos diz que estamos integrando sobre apenas uma das variáveis, cuja escolha é arbitrária e claramente leva a resultados diferentes no lado esquerdo para cada variável.

Para buscarmos respostas a essas perguntas, é pertinente neste momento nos perguntarmos qual seria o uso de um “Teorema Fundamental do Cálculo para várias variáveis”. No caso de funções de uma variável, podemos citar por exemplo a aplicação original dada por Newton ao estudo do movimento dos corpos (pontuais): a partir da velocidade v(t)=x'(t) de uma trajetória unidimensional x(t) de uma partícula pontual ao longo de um intervalo de tempo t\in[a,b], podemos obter o seu deslocamento total x(b)-x(a) integrando v(t) em [a,b].

Um análogo multidimensional dessa situação pode ser encontrado na descrição do movimento de fluidos. Podemos pensar num fluido num domínio (digamos) tridimensional U\subset\RR^3 (que pode representar um recipiente, um lago, etc.) como um contínuo de inúmeras partículas constituintes em movimento dentro de U. Imaginemos, numa situação ideal, que pudéssemos “colorir” uma dessas partículas na posição \vx=(x,y,z)\in U num instante t_0 e seguir seu movimento ao longo do tempo. Isso nos permitiria traçar a trajetória

    \[\vx(t)=(x(t),y(t),z(t))\]

dessa partícula em função do tempo t e, em particular, calcular sua velocidade

    \[ \vv(t_0)=\vx'(t_0)=(x'(t_0),y'(t_0),z'(t_0)) \]

no instante t_0. Se fizermos isso com todas as partículas do fluido em U no instante t_0, o resultado é uma regra que atribui a cada \vx\in U o vetor velocidade \vV_{t_0}(\vx)=\vv(t_0) da partícula do fluido no instante t_0 que, nesse instante, passa pela posição \vx=\vx(t_0). A aplicação \vV_{t_0}:U\To\RR^3 obtida dessa forma é uma “fotografia” do movimento do fluido como um todo no instante t_0 – um campo vetorial (tridimensional) em U, que neste caso chamamos de campo de velocidades do fluido em U no instante t_0. Obviamente, podemos fazer o mesmo em qualquer outro instante de tempo t e obter o campo de velocidades do fluido \vV_t(\vx) nesse instante, resultando num campo vetorial tridimensional \vV:\RR\times U\To\RR^3 dado por \vV(t,\vx)=\vV_t(\vx). Em particular, o domínio e o contradomínio de campos vetoriais não precisam ter a mesma dimensão.

Agora podemos tentar descobrir qual seria o análogo para várias variáveis dos objetos envolvidos nos dois lados da fórmula (1). No caso, consideremos apenas as variáveis espaciais \vx=(x,y,z) e o campo de velocidades \vV_t(\vx) em U no instante (digamos) t. Seja um subdomínio K\subset U com fronteira \partial K e interior não-vazio, que será nosso domínio de integração.

Um análogo possível para o lado esquerdo de (1) é o fluxo do fluido através de K no instante t, que intuitivamente é a taxa de variação de quantidade de fluido que atravessa \partial K nesse instante. No caso unidimensional, vemos que um fluxo positivo através de cada ponto de K=[a,b] significa fluido saindo de K, por isso f(b) contribui com sinal positivo e f(a), com sinal negativo. No caso multidimensional a situação é mais complicada, pois a quantidade de fluido que entra ou sai através de cada ponto de \partial K depende do ângulo que a velocidade do fluido faz com o vetor normal a \partial K nesse ponto. Isso é mais um indicativo de que um análogo razoável do Teorema Fundamental do Cálculo em várias variáveis necessariamente envolve campos vetoriais – a informação direcional de \vV_t é essencial na definição de fluxo.

Finalmente, como devemos “somar” a contribuição de cada ponto de \partial K para o fluxo do fluido, concluímos que uma integral sobre \partial K está envolvida na definição de fluxo. Quanto ao lado direito de (1), intuitivamente devemos ter a integral de algum tipo de “derivada” de \vV_t sobre K. A ideia que emerge é que integrar tal “derivada” num domínio n-dimensional equivale a integrar na fronteira desse domínio, que possui “uma dimensão a menos”. Isso é exatamente o que ocorre no caso unidimensional. Assim, já vislumbramos a simplificação calculacional que esperamos obter com um Teorema Fundamental do Cálculo, bem como qual seria a relação conceitual dessa “derivada” com o processo de integração em várias variáveis.

Obviamente, o domínio K deve ser tal que faça sentido calcular integrais tanto em K como em \partial K. Contudo, a noção de derivada de campos vetoriais que entra no que seria a versão de várias variáveis do Teorema Fundamental do Cálculo ainda nos elude com as informações que temos. Para encontrar essa noção, precisamos reconsiderar a construção de integrais múltiplas e a própria noção de volume de um ponto de vista mais geométrico. A motivação para tal tarefa agora é evidente: como visto acima, um teorema desse tipo nos permite igualar o fluxo de um campo vetorial em \partial K à integral em K de uma certa “derivada” desse campo. No caso de um fluido, a dinâmica desse campo de velocidade segue certas equações envolvendo derivadas parciais deste, que permitem relacionar essa “derivada” a outras quantidades envolvidas nessa dinâmica (fontes, sorvedouros, etc.). Desta forma, o Teorema Fundamental do Cálculo é uma ferramenta fundamental no estudo da dinâmica de fluidos.

Algo similar ocorre no estudo do Eletromagnetismo. Aqui, a situação é a seguinte: uma partícula de massa m e dotada de carga elétrica movendo-se ao longo da trajetória \vx(t) é sujeita em cada ponto \vx(t) por onde passa a uma força \vF(t,\vx(t)), de modo que tal trajetória está sujeita à Segunda Lei de Newton

    \[m\vx''(t)=\vF(t,\vx(t))\ .\]

O campo de forças \vF(t,\vx) é um campo vetorial tridimensional que, por sua vez, depende de dois outros campos \vE(t,\vx) e \vB(t,\vx) — respectivamente chamados de campo elétrico e campo magnético. Infelizmente, a imagem geométrica de \vE e (particularmente) \vB não é tão simples quando a do campo de velocidades de um fluido, mas as equações diferenciais que determinam sua dinâmica são consideravelmente mais simples (dentro do âmbito da Física Clássica). Novamente, podemos usar o Teorema Fundamental do Cálculo para relacionar a “derivada” de tais campos com as fontes destes (cargas e correntes elétricas) por meio das equações supracitadas.

Retomaremos as aplicações físicas mencionadas acima em posts subsequentes. Nossa tarefa principal, agora, é desenvolver as ferramentas necessárias para a formulação do Teorema Fundamental do Cálculo em várias variáveis.

Pedro Lauridsen Ribeiro

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